09 setembro 2009

Deixar ir...



o Domingo
o Sol
a Juventude
os Antigos Amores.
Para que a Segunda venha
a Chuva venha
a Velhice venha
Novos Amores venham
a Morte venha.


Dizem os budistas que a raiz de todas as dores está no apego.
O rabino Nilton Bonder, em um curso, disse que quando uma pessoa não quer morrer, ou seja, está agonizando, mas não consegue desprender-se da vida, se faz necessário uma conversa com o quase morto sobre o por quê de ele não querer ir, da importância de 'soltar' as pessoas, os bens ou qualquer coisa que o mantenha preso a essa vida.
Tarefa muito difícil para os familiares, pois, apesar do sofrimento, ainda preferimos a pessoa viva. Por isso a necessidade de um rabino, pastor, benzedor, padre ou qualquer outra pessoa isenta de emoção por aquele ser para 'conversar' com o escolhido da Dona Morte.
Estava com uma gatinha doente há meses. Passamos por mudanças de casa, de cidade, sofremos um grave acidente de carro e muitas outras situações delicadas nesse tempo. E, mesmo em seu corpinho cansado, ela aguentou firme ao meu lado.
Na verdade sempre foi assim. Sua mãe, Marie, só deu à luz à Cindi e aos seus irmãos quando eu pude estar ao seu lado e, desse modo, acompanhar e auxiliar no parto.
Minha filha a adotou, mas ela me escolheu.
Animais têm dessas coisas: pensamos que escolhemos, mas nós é que somos escolhidos.
Suspeito ser isso coisa de anjo.
Ela acompanhou meus anos na faculdade, meu desenvolvimento profissional. Acompanhou cada passo do crescimento da minha filha. Mudanças pessoais, doenças e alegrias.
Com exceção das noites em que estive viajando, nunca dormiu separada de mim. Sempre fazia questão de deixar uma pata encostada no meu corpo como quem diz "olha, estou aqui". E sempre esteve.
Figura silenciosa e misteriosa mais que todos os outros gatos que já tive. Não conhecemos o som do seu miado. Jamais se interessou em conhecer a rua e deixava bem claro que só adorava a mim e só a mim 'prestava reverência', ignorando por completo os demais.
Eu costumava brincar com a minha filha dizendo que ela, a Cindi, era minha conselheira. Mas, de alguma forma que não sei explicar, nos comunicávamos.
Hoje não foi diferente.
Na sua agonia de morte não conseguia me afastar dela e não me permitia soltar sua pata. Decidi que não almoçaria e adiaria todos os compromissos.
Ela disse 'não', que não concordava com isso e que nossa 'conversa' seria breve! Insisti.
Falei, da boca pra fora que compreendia que havia chegado sua hora.. mas não a soltava. Queria manter com meus dedos os frágeis fios de vida que a prendiam.
Com muito custo sentei-me numa cadeira distante e em pensamento lamentava seus últimos meses e pensava no quão injusta é vida! Ela me disse "Não é esse o fio de raciocínio que quero que siga". "Tudo bem", respondi. Respirei fundo. Resolvi silenciar a mente tagarela.
De repente o que comecei a sentir foi uma enorme gratidão por todos os anos em que ela se dedicou a mim. Por sua companhia, presença, 'conselhos' e amor. Compreendi que precisava deixá-la ir, que estava sendo cruel e egoísta querendo mais tempo a seu lado.
"Sou humana, Cindi".
Me fez prometer que me cuidaria melhor e que seria uma boa companheira de mim mesma e de quem quer que fosse, como ela me ensinou.
Morreu em paz, depois dessa nossa última conversa.